Se pode-se dizer que o Carnaval é a festa mais popular e importante do calendário dos brasileiros, Kléber di Lázzare propõe uma crítica aos tempos atuais, em que a política e as conquistas sociais estão em risco, na encruzilhada das avenidas que recebiam carros alegóricos, serpentina e corpos fantasiados, nus e alegres.
Além de estar no palco, Di Lázare assina a dramaturgia, encenação e cenografia, e apropria-se da frase de Oswald de Andrade (1890 – 1954), do Manifesto Antropofago: “Não fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval” . Assim, O Futuro Chegou Ontem é um solo-manifesto que ilumina os signos do Carnaval, para explicitar as violências e os absurdos da recente reclusão da pandemia covid-19, embalado por um governo federal golpista e negacionista.
Dramaturgia
O espetáculo abre-se numa rua vazia da folia, com um pierrô maltrapilho abandonado e afogado nas lembranças da grande festa. Inicialmente a dramaturgia segue numa trilha de nostalgia, homenageando importantes senhoras e personagens do último carnaval. Em seguida, já confuso pela falta de ar, sintoma do novo coronavírus, o palhaço delira e dá vida a duas personagens
Uma madame e um pedreiro são duas figuras dicotômicas trazidas à cena para explicitar as distinções e absurdos da desigualdade social brasileira. E é aí, sem dúvida, que os relatos ganham sentido e o intérprete conquista o espectador.
Pode-se dizer que há certa fragilidade na construção dramatúrgica em que se inicia no macrossocial do Carnaval e se aquieta no microcosmo da madame e do pedreiro. Mesmo original e fecundo, parece acontecer duas peças quase desconexas, o que felizmente, a urgência dos temas e a proposta cênica deixa tudo coeso e possível.
Dito isso, o encenador usufrui dos elementos do Carnaval e localiza os personagens nesse fim de rua e celebração. Há aí uma metáfora ao desânimo de muitos brasileiros em relação às festas que não aconteceram e de um Brasil que também saiu de cena. Um futuro que não está mais entre a gente.
Encenação
Quanto à encenação propriamente dita, dois elementos precisam ser destacados ao colaborar e acrescentar proficuamente à dramaturgia. O figurino de pierrô de Marcus Ferreira e Tarcísio Zanon feito de materiais reciclados, como tampinhas, canudos, garrafas pets e assim por diante, é um desbunde de criatividade.
Por sua vez, a trilha sonora de Edu Berton parece alterar o status de monólogo e torna-se um segundo personagem à jornada do palhaço, pois dialoga e cria camadas e possibilidades à cena. Tanto marca e reforça o texto, quanto tonifica o clima de manifesto, sampleando canções e trechos revoltantes dos discursos de Bolsonaro durante a reclusão nos anos de 2020 e 2021.
O ator di Lázzare mostra fôlego, mesmo na falta de ar de sua personagem. Inicia em um tom operístico, empostado e teatral, e toma as duas personagens originalmente caricatas em registros humanizados e reconhecíveis nas esquinas ou nas redes sociais.
O Futuro Chegou Ontem é mais uma obra que avalia e remonta os recentes dias de morte, solidão e desamparo. É uma criação impregnada das questões dessa época, afinal foi gestada durante a pandemia. E teve uma primeira versão apresentada remotamente no início deste ano, em meio ao que era chamada de “terceira onda” de mortes.
“É uma escrita cênica, um manifesto, um cortejo teatral, que visam dar voz e visibilidade aos corpos, às culturas, aos sobreviventes, aos silêncios forçosos, e às páginas apagadas da nossa história; dar visibilidade e palco para os direitos retirados e às expressões de um povo – expressões, direitos e páginas que definem esse povo”, explica di Lázzare.
Manifesto pedagógico
Por fim, é comovente e vigoroso ver um artista apoiar-se nas diferentes possibilidades das artes da cena para trazer tão importantes reflexões sobre a cultura e as incongruências nacionais. Mesmo sendo um flagrante pessimista, há um convite para seguir e encontrar o futuro no amanhã, feito de importantes conquistas gestadas e realizadas hoje.
O Futuro Chegou Ontem é um registro e uma possibilidade. Ouso dizer que é uma montagem de relevância pedagógica, pois possibilita refletir sobre o que passou, da boiada que passou e vai passando, e de que ainda é possível reassumir as rédeas dessa história.
Vão ver!
Serviço
De 3 de julho a 8 de agosto – Aos domingos, às 17h, e às segundas-feiras, às 20h.
80 minutos.
14 anos.
Ficha Técnica
Dramaturgia, Concepção e Interpretação: Kleber di Lázzare
Preparação Corporal e Assistência de Direção: Marcela Sampaio
Pesquisa Musical, Trilha Sonora e Música Original: Edu Berton
Pesquisa e Produção Musical: Vitor Trida
Voz na Canção Original: Aline Calixto
Criação e Execução de Figurino: Marcus Ferreira e Tarcísio Zanon
Costureira: Simone Santos
Aderecista: Biano Ferraro
Pintura de Arte: Leandro Art
Criação de Cenografia: Kleber di Lázzare
Execução de Cenografia: PalhAssada Ateliê
Visagismo: Louise Helène
Fotografia: Cleber Correa
Identidade Visual e Mídias Sociais: Carlos Sanmartin
Contrarregra e Operação de Som: Rafael Fuzaro
Assessoria de Imprensa: Pombo Correio
Produtora Executiva e Operação de luz: Marina Rodrigues
Direção de Produção: João Noronha
Realização: RN Produções Artísticas